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Álvaro Machado Dias

O que leva alguém ao extremismo político? Neuropsicologia explica

Andrea Piacquadio/ Pexels
Imagem: Andrea Piacquadio/ Pexels

02/12/2020 04h00

"Política é guerra sem banho de sangue, enquanto guerra é política com banho de sangue". Quem disse isso foi Mao Tsé-Tung, um dos maiores especialistas do século XX em banho de sangue, hábil como poucos na política.

Um balanço das eleições recentes mostra que, na média, as disputas foram menos fleumáticas do que há dois anos - as redes sociais são um bom termômetro disso. Elas também foram um pouco menos polarizadas. As duas coisas mostram-se claramente conectadas e, como sempre, encontram exceções, como foi o caso em Recife.

Em alguns encontros recentes ouvi de gente preparada e inteligente que o extremismo político estava com seus dias contados - pelo menos por um bom tempo. O clima institucional mudou; a bola da vez é outra - foi o que ouvi. Será?

Na minha opinião, para avançar nesse debate precisamos saber se o extremismo surge e desaparece apenas em função do clima institucional, ou se existem traços cognitivos, disseminados na população, que reforçam a demanda por posturas políticas mais extremas ou radicais. Neste caso, a evolução das fórmulas para acessar estes traços pode ter criado um novo normal para o extremismo político.

Antes de mergulhar no assunto, é importante ter em mente que o extremismo político não explica completamente - nem tampouco é explicado - pela polarização. Conforme recentemente escreveu o professor James Roger "Polarização difere de extremismo (...) extremismo não é necessariamente uma categoria partidária. Nós podemos pensá-lo como uma tendência que estende a distribuição ideológica". Ou seja, o extremismo está mais no campo das ideias (que políticos e movimentos personificam) e pode se aplicar tanto à esquerda, quanto à direita. O extremismo é uma espécie de caixinha de ferramentas discursiva e postural, cujo uso facilita a polarização e o ódio, mas basta ver o que acabou de acontecer em Recife para compreender que não só as diferenças, mas também as semelhanças, podem acirrar a polarização, assunto que trataremos numa outra ocasião.

O mercado de ideias

A política funciona como um mercado de coisas imateriais. Tipos, propostas e ideologias surgem, ressurgem e desaparecem na relação competitiva com as alternativas. Mais ainda, a política é feita de memes, ideias que parecem geneticamente programadas para brigar por um lugar ao sol na cabine cerebral de seus consumidores e que são regidas por princípios como mutação, evolução e seleção natural.

A todo tempo, há gente encarnando e transmitindo estes memes, com convicção, cinismo ou um misto dos dois. Em parte em função deles e em parte em função de fatores como esforço, carisma e capacidade de mobilização, as coisas da política reverberam.

A demanda por estes memes é elástica, quando o custo pessoal da defesa de uma tese sobe, sua popularidade desce. Séculos de adaptação a períodos de baixa demanda levaram à seleção de memes capazes de grudar ao sustentáculo da sociedade como esporos silenciosos, ali permanecendo por gerações, à espera de uma nova oportunidade de se multiplicar.

O caráter exíguo da cédula eleitoral faz com que a arte da política esteja em personificar memes que não estejam em estado de dormência; assim a variação temática (mas não a de opiniões) reduz-se. Isso não facilita a vida do político sem uma base eleitoral estabelecida, o qual precisa se destacar por algo além de suas propostas, num nível ainda maior do que a concorrência já estabelecida.

Aqui, vale ter em mente que a disposição para votar em alguém pela primeira vez segue um conjunto de etapas decisórias, comuns a todo mercado de ideias. A primeira está ligada à quebra da barreira do desconhecimento e formação de laços empáticos; a segunda envolve o questionamento de preferências políticas correntes, tendo como pano de fundo a nova relação. Só então vem a decisão de cravar o voto, a qual pode ou não se converter em apoio de longo prazo.

Uma consequência lógica aparente disso é que a oferta de memes com maior potencial de disseminação é essencial para as vitórias eleitorais para cargos executivos. Se assim fosse, o protagonismo de políticos com discursos extremistas seria virtualmente impossível, o que sabemos não ser verdade.

Alguns fatores ajudam a entender isso. Eleições não são ganhas por maiorias absolutas; ter uma base suficientemente grande pode dar conta do recado, especialmente se a concorrência não empolgar ou não se unir. Em paralelo, existe um segundo tipo de voto, que não emerge da identificação com as propostas do candidato, mas da personificação da rejeição a um outro. Finalmente, coloca-se o fato de que a adoção de posturas extremas é uma estratégia eficiente para a diferenciação, o que por sua vez contribui para que o eleitor note a existência do político.

Enquanto as ideias brigam por sobrevivência no cérebro dos consumidores, os políticos disputam cliques eletrônicos, na boa e velha economia da atenção. Por causa dela, de nada adianta falar tudo o que todo mundo espera de um bom cidadão, enquanto o público boceja na sua frente. O político que dá certo é uma espécie de performer, especializado em mobilizar o inconsciente do seu público. Isto, naturalmente, passa pela capacidade de vencer a indiferença, precipício da profissão.

Um estudo recente da Universidade Northwestern sobre padrões de voto nos Estados Unidos é preciso em apontar isso. Os autores modelaram matematicamente as escolhas eleitorais ao longo do tempo, mostrando que a homogeneidade intrapartidária aumenta o extremismo dos discursos políticos. A lógica é simples: quando todo mundo num grupo político começa a se parecer demais, cada um decide por si só se diferenciar, radicalizando seu discurso. E todos começam a se parecer novamente, só que de maneira mais extremista. Nas palavras dos autores: "apelar aos segmentos mais extremos do eleitorado pode ser uma estratégia política vencedora em momentos de maior homogeneidade intrapartidária" (Yang, et. al, 2020, p. 655).

Apesar de ser uma lógica que se aplica particularmente bem ao bipartidarismo típico dos Estados Unidos, ela encontra ecos no Brasil, onde não deixa de ser verdade que a caixinha da mesmice é um dos grandes riscos enfrentados por todo político e um dos drivers de variadas tentativas de diferenciação.

Uma coisa que faltou considerar sobre os memes é que eles não se espalham ao acaso; enquanto o sistema imunológico de alguns aparentemente lhes repele, o de outros não lhes oferece nenhuma defesa. Ainda mais, estes hospedeiros costumam alimentar-lhes com seus neurônios mais nutritivos: as células piramidais do córtex pré-frontal, onde reside o núcleo da intencionalidade.

Memes não se propagam pela via dos interesses alheios aos cérebros que inseminam. Ao contrário do que alguns estrategistas do passado davam a entender, as pessoas não podem ser manipuladas em qualquer direção. Ou melhor, talvez até possam, mas há direções muito mais naturais para umas e direções muito mais naturais para outras. Assim, devemos nos despir de nossas couraças iluministas e perguntar: qual o mindset da abertura aos discursos políticos extremistas? Como são as pessoas que alimentam esses memes com seus cérebros?

A neuropsicologia das preferências extremistas

Uma antiga premissa do universo das estratégias políticas é que as mais variadas posições encontram seus adeptos nas massas, isto é, na população em geral. Assim, o objetivo do político deve ser chegar simultaneamente ao "coração" do maior número possível de pessoas. Essa é a essência da ideia de que qualquer um pode ser convencido de qualquer coisa.

Estudos recentes sobre a neuropsicologia das preferências políticas mostram que essa visão é imprecisa. Há traços mentais que claramente favorecem a adesão a algumas correntes políticas em relação a outras, assim como há traços que favorecem o extremismo, seja este qual for.

Um dos fatores centrais para se compreender a vulnerabilidade ao discurso extremista é a dificuldade para revisar hipóteses, conforme novas informações vão surgindo, o que tecnicamente é chamado de flexibilidade cognitiva. Assim, por exemplo, em A mente partidária (2019), os autores mostram que o desempenho em testes neuropsicológicos que exigem mudanças de estratégias é inversamente relacionado ao ardor com que posições políticas mais extremas são defendidas.

Este resultado surge na esteira de um estudo de 2018, que mostrou que a crença em ideias políticas radicais está associada a falhas em mecanismos de atualização metacognitiva. Explico. Os nossos pensamentos conscientes são divididos em dois tipos: pensamentos sobre as coisas e pensamentos sobre os próprios pensamentos, estados afetivos e assim por diante. Por exemplo, enquanto escrevo estas palavras, penso sobre aquilo que desejo transmitir, bem como retomo, de tempos em tempos, o meu próprio processo construtivo, para ver se está indo na direção correta. Este segundo processo chama-se metacognição. Quando o utilizamos, fazemos uma espécie de diagnóstico cognitivo, que nos ajuda a mudar de rota se a percepção é de que deslizamos. A prática metacognitiva é essencial para o autoconhecimento.

Existem testes psicológicos que medem a capacidade de acessar pensamentos metacognitivos. Aplicando uma bateria deles, pesquisadores da Universidade de Londres e do Instituto Max Planck concluíram: "nossos dados mostram que aspectos-chave do radicalismo estão associados a habilidades metacognitivas anormais (...) de maneira importante, nossos resultados mostram que o radicalismo está associado a uma redução na sensibilidade metacognitiva, i.e., na consistência com que os sujeitos distinguem suas crenças corretas das incorretas, nos testes" (Rollwage, Dolan e Fleming, 2018, p. 4018).

Os dois estudos citados fundamentam aquilo que os economistas Pietro Ortoleva e Erik Snowberg haviam apresentado em 2015: excesso de confiança abre as portas da mente ao extremismo político. Essa perspectiva, por sua vez, reforça um estudo feito dois anos antes, o qual revelou a existência de uma correlação entre radicalismo e a percepção de ser dotado de crenças superiores às das outras pessoas. Assim chegamos aos dias atuais, em particular, à noção de que a impressão de superioridade das próprias crenças favorece a conversão de debates complexos em dicotomias incapazes de contê-los (Prooijen e Krowel, 2019), as quais caem como uma luva na eterna briga pela sobrevivência dos memes.

Em consonância com isto tudo, saiu agora um estudo na prestigiosa revista PNAS (minha preferida para uma série de assuntos) mostrando que pessoas mais dogmáticas tendem a se conectar menos com as suas dúvidas e atualizar menos as suas crenças. Conforme ressaltam os autores: "pessoas dogmáticas têm menos inclinação a buscar informações antes de tomar uma decisão. Ao abrir mão desta oportunidade, tendem a realizar julgamentos menos precisos" (Schulz, et. al, 2020, p. 4).

Dogmatismo, baixa flexibilidade cognitiva e dificuldade para avaliar a precisão das próprias crenças formam um verdadeiro hub de processos cognitivos favoráveis à incorporação de memes extremistas, facilitando imensamente o trabalho dos políticos que jogam pelas pontas.

Para fechar

A ideia de que a incorporação de visões políticas extremistas é facilitada por falhas em processos de checagem informacional possui o mérito de mapear um fenômeno complexo, por meio de estratégias neuropsicológicas simples e replicáveis.

Isto não significa que inexistam outros pontos de ancoragem para os memes extremistas, em esferas da mente onde o que conta mesmo são as fantasias e o imaginário. Alguns dos estudos mais interessantes que conheço são exatamente sobre essas fantasias - que, apesar de decisivas no jogo mais pesado da política, não se adaptam muito bem ao meme do conjunto de evidências adotado aqui.

ps. ideias não comem neurônios, nem possuem código genético. O sentido é figurado.