Treta de Jards Macalé e João Gilberto está em DVD de Woodstock brasileiro

Por razões toscas, o pai da bossa nova, João Gilberto, e o compositor experimentalista Jards Macalé, amigos de longa data, se desentenderam feio certa vez e quase partiram para a porrada em um hotel de Bauru. A treta ocorreu em 1984, nos bastidores do Festival de Águas Claras, realizado em uma fazenda em Iacanga, no interior de São Paulo. Pelo que se sabe, o duelo foi bizarro: um armado com cabide, o outro nu, só com um tapa-olho na cabeça.

O UOL teve acesso com exclusividade a essa e outras histórias, que estão em cinco horas de depoimentos exclusivos e inéditos. O conteúdo faz parte da pesquisa realizada para o longa "O Barato de Iacanga", lançado em 2019, sobre o evento que marcou as décadas de 1970 e 1980 e que ficou conhecido como o Woodstock brasileiro. O material, que não entrou no documentário, será lançado em setembro, em um DVD duplo que terá o filme e virá recheado de extras e memorabilia (pôster, cards e livreto).

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No filme, disponível na Netflix,, Macalé aparece apenas em imagens de arquivo. A participação rápida abre a última parte do documentário, que mostra a derradeira e desastrosa edição de 1984 do festival. Quase tudo deu errado, em parte por causa de uma chuvarada que derrubou lonas, palco e parte da programação. Alguns artistas ficaram no hotel e nem chegaram a se apresentar. Foi o caso, por exemplo, de João Gilberto. E foi justamente nesta edição que o tempo também fechou para a dupla de músicos.

"O João me chamou para tomar uma sopinha", conta Jards Macalé na entrevista ao diretor Thiago Mattar. O papo acabou não entrando no filme. Segundo o músico, já era madrugada alta, quase três horas da manhã, quando eles saíram pelas ruas de Bauru até encontrar um barzinho já quase fechado.

João Gilberto, que morreu em 2019 e era conhecido por discos célebres, como o "Chega da Saudade", desceu do carro e foi conferir se no local tinha sopa. Macalé aproveitou para fumar um cigarrinho. Quando o amigo retornou, deu um baita esporro nele por causa da fumaça. "Ele odiava nicotina", explica o músico, que ficou furioso com a bronca e voltou para o hotel.

Segundo Macalé, a hospedagem não era exatamente cinco estrelas. Fazia um calor insuportável. A janela do quarto, do tipo basculante, não ajudava a refrescar, mas a luz entrava. Por isso, para conseguir dormir, botou um tapa olho e se jogou na cama, sem roupas. Pouco depois, o telefone tocou. Era o amigo João, novamente dando uma bronca por causa do cigarro que ele tinha fumado.

Já sem paciência, Macalé quase arrebentou o telefone no gancho e se deitou para voltar a dormir, mas começou a ouvir uma gritaria. "Sai daí seu moleque!" Era João Gilberto, furioso e aos berros no corredor.

"Nunca tinha visto ele puto desse jeito", conta Macalé. "Quando abri a porta, as pessoas estavam saindo dos outros quartos assustadas, João estava com um cabide na mão me chamando para a briga. E eu nu, só com um tapa-olho na cabeça."

A 'bad' de Alceu Valença

Outro relato curioso que fará parte dos extras do DVD "O Barato de Iacanga" é o de Alceu Valença. Apesar de a entrevista ter sido sobre a participação dele no festival de Águas Claras, o que chama a atenção é o trecho em que o cantor pernambucano fala de sua primeira "bad trip" com maconha, em um apartamento na rua Paim, no centro de São Paulo.

"Todo o mundo fumava maconha, mas eu pensava que o 'barato' era só sugestão mental", explica o artista. Ele revela que já tinha fumado, mas sem tragar, só para não ficar parecendo o careta da turma. A "viagem" de Alceu teve quadros na parede mudando de forma e uma paranoia de que toda a cidade de São Paulo seria dizimada por uma ventania saída de dentro de uma canção de Caetano Veloso. "Fiquei muito doido, nunca mais fumei, porque senão teria que ser internado."

Perrengues nos bastidores

"O que ficou de fora é tão legal quanto o que entrou no filme", garante o diretor Thiago Mattar. Segundo ele, a ideia é, a partir de entrevistas inéditas e de imagens raras, resgatar as histórias perdidas do evento —que abriu caminho para os festivais de música no Brasil, como o Rock In Rio, realizado em 1985, um ano após a última edição do festival de Águas Claras.

Perrengues vividos nos bastidores do evento aparecem em trechos da entrevista com Leivinha, um dos idealizadores do Woodstock brasileiro. Apesar da edição de 1983 ser conhecida como uma das mais profissionais da história do festival, não faltaram problemas.

Uma chuva forte transformou a região num mar de lama e um caminhão que levava alimentos atolou. Além de não conseguir chegar com a comida, o veículo fechou a estrada. Para atravessar o barro, artistas tinham que ser levados por tratores. No meio da bagunça, a alimentação para a equipe da produção acabou. Leivinha conta que lembrou do helicóptero que estava na fazenda, cedido por um patrocinador. "Tínhamos que comprar comida e pela estrada não dava."

O DVD mostra também mais detalhes sobre a última e catastrófica edição em 1984. Nos extras, quem relembra os momentos mais tensos é Sonia Abreu, conhecida como a primeira mulher DJ do Brasil, que morreu em 2019. Foi ela que segurou a bronca quando o público começou a jogar garrafas no palco em protesto.

Para os fãs de Raul Seixas ávidos por novidades, o DVD reúne também imagens raras e inéditas em Super-8, com trechos do show do maluco beleza no festival em 1981. "Mas é um registro sem som", avisa Mattar.

O lançamento do DVD "O Barato de Iacanga - Edição de Colecionador" está programado para setembro, com tiragem limitada de mil exemplares. O produto está em pré-venda no site.