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E-mails revelam que Fla sabia de problemas elétricos em alojamento do Ninho

Vista aérea do Ninho do Urubu em 8 de fevereiro de 2019: incêndio matou dez jovens das categorias de base do Flamengo - Thiago Ribeiro/AGIF
Vista aérea do Ninho do Urubu em 8 de fevereiro de 2019: incêndio matou dez jovens das categorias de base do Flamengo Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Leo Burlá e Pedro Ivo Almeida

Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo

09/09/2020 04h00Atualizada em 23/08/2023 12h12

Trocas de emails obtidas pelo UOL Esporte evidenciam que o Flamengo sabia de riscos em função da precariedade das instalações elétricas do Ninho do Urubu desde 11 de maio de 2018 - nove meses antes do incêndio no alojamento do centro de treinamento que matou dez meninos das categorias de base do clube após um curto-circuito em um dos aparelhos de ar-condicionado do local.

Correspondências internas trocadas entre os então responsáveis pelo dia a dia do CT apontaram aos dirigentes do Flamengo as "não conformidades" das instalações e "suas gravidades", mostrando que os seguidos autos de infração da Prefeitura não eram os únicos problemas para o funcionamento do lugar como dormitório.

Os problemas na parte elétrica foram verificados semanas antes. A partir disso, foi chamado um técnico de segurança do trabalho do clube para a realização de uma inspeção no local. Tal visita ocorreu no dia 10, com novo relatório técnico feito no dia seguinte e enviado a responsáveis rubro-negros.

E-mail Flamengo Ninho 2018 - Reprodução - Reprodução
E-mail com relatório de maio de 2018
Imagem: Reprodução

"A avaliação foi realizada na presença do Sr Adilson, da empresa CBI, este indicado pelo Sr Luiz Humberto [Gerente de Administração do Flamengo], sendo comprovado as não-conformidades e suas gravidades. Conforme a avaliação do Sr Adilson e relatório anterior, a situação é de alta relevância e grande risco, ficando este de apresentar uma proposta ao Sr Luiz Humberto para atendimentos emergenciais de alguns pontos: quadro elétrico (poste ao lado do refeitório), disjuntores e fiação no jardim, quadro elétrico atrás do alojamento da base", alertou o relatório enviado pelo funcionário do departamento pessoal Wilson Ferreira ao gerente de administração do Flamengo, Luiz Humberto Costa Tavares, à gerente de recursos humanos Roberta Tannure e a um funcionário identificado como Douglas Silva Lins de Albuquerque em 11 de maio.

E-mail do Flamengo sobre problemas elétricos no Ninho - Reprodução - Reprodução
Vistoria em 2018 já apontava problemas elétricos que não foram reparados no alojamento da base no Ninho
Imagem: Reprodução

Com dez fotos e imagens que detalhavam especialmente as citadas "gambiarras" no quadro elétrico atrás do alojamento da base (contêineres) - local do incêndio trágico -, o relatório chamava a atenção pela observação final.

"As irregularidades abaixo não serão tratadas no momento, pois, conforme informação, o local será demolido e substituído por novas instalações até o final do ano de 2018, deixando claro que caso haja fiscalização e autuação o argumento mesmo que evidente não justifica a irregularidade, ficando a critério do órgão fiscalizador a penalidade ou intervenção".

O técnico responsável reproduzia o que ouviu dos funcionários do clube que o acompanharam. A ideia inicial do clube, ainda durante a gestão de Eduardo Bandeira de Mello, era ter o novo CT da base ainda em 2018, substituindo as instalações verificadas. Nada feito. As novas e definitivas instalações não ficaram prontas no tempo planejado. E os jovens dormiram nos alojamentos precários citados até 8 de fevereiro, dia do incêndio que tirou a vida de dez jovens.

Relatório Ninho do Urubu 1 -  -
Relatório instalações elétricas Ninho do Urubu 2 - Reprodução - Reprodução
Relatório apontou diversas falhas nas instalações elétricas do Ninho do Urubu nas áreas que recebiam os jovens
Imagem: Reprodução

No dia 12, o gerente Luiz Humberto repassou o documento que detalhava o cenário preocupante ao diretor executivo de administração do Ninho do Urubu, Marcelo Helman.

E-mail Marcelo Helman Luiz Henrique Flamengo Ninho do Urubu 2018 - Reprodução - Reprodução
E-mail com relatório apontando problemas foi enviado ao diretor Marcelo Helman
Imagem: Reprodução

"Boa tarde, Marcelo. O técnico de segurança do trabalho do CRF [Clube de Regatas do Flamengo], em vistoria nas instalações elétricas do CT, verificou vários itens fora da conformidade com as normas de seguranças exigidas. Falamos com o Marcelo Sá, que estava no CT, a respeito dessas instalações (não sabiam se foram feitas pelo patrimônio ou se já vêm de longa data, no esquema 'faça-de-qualquer-jeito' que os antigos administradores atuavam). Sá achou por bem solicitar que o Adilson (engenheiro eletricista que fez a instalação elétrica do CT - que você conhece) acompanhasse para verificar a real situação e elaborasse, caso seja necessário, um primeiro orçamento para colocarmos as instalações elétricas em dia. Após o envio desse primeiro orçamento, pediremos outros mais para compor quadro de concorrência. Segue abaixo e-mail enviado pelo técnico a respeito do que encontrou no CT (com fotos). Te manterei atualizado quando o Adilson fizer suas considerações. Grande abraço. Nos falamos melhor na segunda", finalizou Luiz Humberto, comunicando à alta diretoria do clube sobre o caso.

Reparos elétricos nunca foram feitos

A empresa CBI fez o orçamento dois dias depois. A previsão era de reparos em até 10 dias a um custo de R$ 8.550,00.

Contratada pelo serviço, a empresa emitiu duas notas fiscais (cada uma no valor de R$ 4.275,00, datadas dos dias 25 de maio de 2018 e 1º e outubro de 2018), mas o trabalho jamais foi executado.

Essa afirmação é feita pela Anexa Energia, que foi contratada pelo Flamengo para produzir parecer após a tragédia. "Para surpresa, em inspeção realizada no local na data de 19/02/2019, verificamos que o objeto do contrato 15.1/18-PA, não havia sido realizado e as instalações continuavam as mesmas de quando a inspeção fora realizada, em registros fotográficos antes e depois do evento que culminou na morte de 10 adolescentes. Podemos perceber que o serviço que a empresa CBI foi contratada, não foi realizado, mantendo o mesmo alto grau de risco antes verificado. As tais "gambiarras" elucidadas na proposta, ainda estavam claramente no local", destacou o relatório de 20 de março de 2019.

Mesmo após o pagamento de outubro e a verificação de que o serviço não havia sido realizado, o Flamengo não providenciou novos reparos. E assim o cenário das instalações elétricas apontado nos relatórios permaneceu. Até o fatídico 8 de fevereiro de 2019.

Orçamento CBI Flamengo Ninho 2018 - Reprodução - Reprodução
Orçamento da CBI enviado ao Fla. Reparo de "gambiarras" nas instalações elétricas do Ninho nunca foi feito
Imagem: Reprodução

Estas peças constam de uma briga judicial entre Rubro-negro e a Anexa, visto que o clube rompeu o contrato em vigência sob a alegação de não cumprimento do trabalho, informação contestada pela empresa. Quando as partes acertaram a prestação dos serviços, a companhia exigiu acesso a todas as correspondências que detalhassem a rotina do Flamengo em todo este processo das instalações do seu centro de treinamento.

"Foi autorizada pelo Flamengo a análise de toda rotina administrativa do clube, na qual foram encontradas diversos emails, dentre um que mais chamou atenção um no qual um técnico de segurança do trabalho do próprio clube alertou sobre as péssimas condições das instalações elétricas e o iminente risco de incêndio, em maio de 2018, para confrontar com a vistoria técnica realizada pela Anexa em fevereiro de 2019, logo após o incêndio, para ao final emitir o parecer técnico sobre a possível causa da tragédia", disse o advogado e representante legal da Anexa, Carlos Alberto Almeida Moreira da Silva.

Relatório Anexa 1 - Reprodução - Reprodução
Relatório da Anexa após o incêndio cita problemas não reparados desde maio de 2018
Imagem: Reprodução

Foi a Anexa também quem detectou irregularidades no sistema elétrico que alimentava os aparelhos de ar-condicionado dos contêineres que serviam de alojamento para os jovens mortos. A empresa apontou má conservação, questionou a capacidade da rede para suportar os mesmos e apontou ainda problemas nos extintores tão logo vistoriou o local após a tragédia. Os problemas verificados pelo clube em 2018 não haviam sido reparados.

"O circuito de 10mm² que alimentava o módulo do alojamento da base, em concordância com o mencionado anteriormente, estava dimensionado em desacordo com as normas pertinentes, visto a corrente do disjuntor geral do quadro de cargas ser de 56,7A, entretanto, este mesmo circuito estava emendado em cabo de 16mm² na entrada da alimentação no container. Além disso, existiam vestígios de diversas "gambiarras" conectadas neste mesmo circuito alimentador. Como sabemos, se a emenda não for executada de forma correta, utilizando conectores apropriados ou materiais adequados, pode haver um aumento na resistência dos condutores, neste caso, além de contribuir para o problema de queda de tensão, há também um aquecimento excessivo no ponto de conexão. O problema de aquecimento no ponto de conexão foi "potencializado" pelo disjuntor de proteção ser incompatível com capacidade máxima dos condutores de 10mm² e 16mm², apesar disso, esta questão poderia ser resolvida se empresa contratada realizasse o serviço que lhe foi contratado", alertou a Anexa, finalizando que os problemas acabaram "criando uma sobrecorrente no condicionador de ar (quarto 2) e fazendo com que a temperatura dos componentes internos, fosse muito elevada, ocasionado o incêndio".

QGD alojamento Ninho do Urubu após incêndio - Reprodução - Reprodução
Foto em relatório mostra proximidade do quadro geral de distribuição - com problemas - do alojamento que pegou fogo
Imagem: Reprodução

Gestões Bandeira e Landim não se entendem no caso

Responsáveis pelo comando do clube no exercício do ano de 2018, integrantes da alta cúpula de Bandeira de Mello conversaram com a reportagem e disseram que não foram informados sobre o caso à época. Ciente de tudo desde o início, o diretor executivo de administração do CT, Marcelo Helman (foto abaixo), no entanto, tinha trânsito livre com vice-presidentes, a quem se reportava, e na presidência rubro-negra.

Em fevereiro deste ano, durante depoimento na CPI que apura o caso na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), Bandeira já havia batido na tecla de que não tinha ciência de tudo que ocorria no Ninho do Urubu. "Eu acho perfeitamente crível que o presidente do clube não soubesse disso", disse à época, se esquivando ao ser questionado se sabia de autos de infração lavrados no centro de treinamento.

Por outro lado, integrantes da alta cúpula da atual gestão questionam tal postura e citam o e-mail obtido pelo UOL Esporte evidenciando que ao menos um diretor executivo do Flamengo à época sabia das condições precárias e do risco no local.

A reportagem ainda apurou que o comportamento do executivo Marcelo Helman após o acidente fatal em fevereiro de 2019 incomodou a direção que acabara de assumir o clube.

O entendimento da atual gestão é que Marcelo poderia contribuir com a compreensão do cenário no centro de treinamento, o que acabou não acontecendo. O diretor repetia que não tinha informações sobre documentos, relatórios e rotina do Ninho, local onde era chamado até de "prefeito".

Marcelo Helman e Bandeira de Mello Flamengo - Divulgação - Divulgação
Marcelo Helman (segundo, da dir. para a esq.) era o responsável pelo Ninho na gestão de Bandeira de Mello (e)
Imagem: Divulgação

O tal prefeito, no entanto, era visto poucas vezes no CT, ainda que fosse o principal responsável do lugar. Em uma reunião após o incêndio, Helman ainda debochou. "Não sei o que estou fazendo aqui, poderia estar na praia", disse, no encontro com outros diretores e membros da cúpula realizado em 10 de fevereiro de 2019. Foi o estopim para que o presidente Rodolfo Landim não o quisesse mais no clube.

Contudo, com receio de demitir o executivo em meio a investigações e configurar um apontamento de culpa no caso, Landim foi orientado a mantê-lo no quadro de funcionários rubro-negro. O presidente ordenou que Helman não aparecesse mais nas dependências do clube, mesmo recebendo o salário de cerca de R$ 60 mil até junho daquele ano, quando foi oficialmente desligado em meio a uma leva de demissões no Flamengo.

Procurado pela reportagem, o clube rubro-negro informou que não se manifestaria sobre as informações relativas aos emails de 2018 e seus desdobramentos. Marcelo Helman não foi localizado até o fechamento da reportagem. A empresa CBI também não teve nenhum representante encontrado até a publicação da matéria.