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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que aceitamos que a polícia entre atirando em favelas e periferias?

07.mai.2021 - Moradores protestam contra a operação da Polícia Civil que deixou 25 mortos na favela do Jacarezinho, ontem, na zona norte do Rio de Janeiro - WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
07.mai.2021 - Moradores protestam contra a operação da Polícia Civil que deixou 25 mortos na favela do Jacarezinho, ontem, na zona norte do Rio de Janeiro Imagem: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

21/07/2022 10h47

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Acordamos nesse 21 de julho com mais uma ação policial em favelas do Rio. Dessa vez, na do Alemão.

O noticiário fornece o número de mortos e feridos. Achamos tudo triste, mas normal.

É apenas mais uma operação que tem como objetivo "pegar bandidos".

Tudo isso a gente assimila porque está em nossa configuração padrão associar favela à bandidagem ainda que as favelas sejam residência de uma maioria trabalhadora.

Assim como em nossos condomínios, onde há trabalhadores mas também há, certamente, bandidos: gente que sonega, que corrompe, que evade, que explora. Gente que escraviza trabalhadoras domésticas e que comete violência de gênero.

Bandidagem não é apenas roubar carro ou celular na esquina. Bandido é também aquele que pratica crimes como sonegação, evasão, exploração e corrupção.

Mas na favela tem muita droga, dizem.

E nos nossos condomínios? Certamente tem na mesmíssima proporção.

Que tipo de democracia permitiria que a polícia entrasse atirando em seu condomínio em busca de suspeitos?

Diante do crime registrado em vídeo de um médico estuprando sua paciente enquanto ela estava parindo vimos uma polícia educadíssima convidar o criminoso a ir com eles até a delegacia.

Estupro comprovado. Um crime chocante, perverso, abjeto. Muito mais grotesco do que roubar um carro, um celular, fumar maconha, cheirar pó.

E, ainda assim, a polícia chega ao hospital sem disparar um tiro sequer.

Por que aceitamos que seja diferente nas favelas e periferias? O que isso diz sobre nós mesmos?

Eis aqui um exercício legítimo: imagine-se acordando ao som de tiros, levantando para ver sua porta toda baleada, um policial fortemente armado já em sua cozinha atirando pela janela.

Ele acertou um tiro na vizinha, uma trabalhadora doméstica que saía para mais um dia de tarefas bem na hora que o tiroteio começou. Você vê o corpo dela no chão e os filhos berrando.

Agora são os seus filhos gritam apavorados. Você começa a passar mal, mas não tem para quem ligar.

O policial nem olha para a sua cara e grita para que você pare de chorar. Aponta a arma para a cabeça do mais velho, ameaça estourar os miolos dele caso vocês não fiquem quietos.

Você sabe que eles vão embora, mas voltarão daqui a um tempo. É assim desde sempre.

Como seus filhos crescerão? Com que tipo de danos emocionais eles se formarão adultos? Você diria que mora numa democracia se tivesse que viver nessas condições?

Você dormiria pensando que da próxima vez talvez sejam os seus filhos aqueles atingidos pelos tiros?

"Ah, mas morreu policial também".

Sim, infelizmente dentro desse cenário de guerra haverá mortes de ambos os lados. De um lado muito mais do que do outro, mas, ainda assim, vidas perdidas em nome de uma falsa ideia de justiça.

Quais vidas, aliás? Se fossem mortos na queda de avião, saberíamos seus nomes, conheceríamos seus rostos, escutaríamos suas histórias. Mas, durante operações policiais, ficamos apenas sabendo dos números: morreram dez, morreram vinte, morreram cinquenta.

Existem corpos matáveis nesse país que muitos miseráveis chamam de uma democracia plena.

Essas ações são, para usar um vocabulário militar, apenas grama sendo aparada. Tudo normal. Vida que segue. Vai cuidar da sua que aqui não tem mais nada pra ver. Circulando.

Que tipo de democracia permite uma cena como essa?

Por que você acredita que a vida de quem mora numa favela comporta esse tipo de crime?

Não tem nada de natural com as ações policiais nas favelas brasileiras.

Elas são atos de uma guerra civil. São o retrato de um país que não se enxerga, não se reconhece pelo que é.

De uma classe alta que se vê como uma outra categoria de ser humano. Uma classe dominante decadente, egoica, escravocrata, delirante.

Uma gente que não é capaz de desfazer sua configuração-padrão para, enfim, poder olhar para essas ações policiais e enxergá-las pelo que elas são: tecnologias de dominação e sujeição que visam perpetuar no poder os mesmos de sempre.