Sou porque eles foram

Kemla Baptista usa a contação de "estórias" para elevar a autoestima de crianças negras

Camilla Freitas De Ecoa em São Paulo (SP) Raphael de Faria

Tem uma música do grupo Fundo de Quintal chamada 'Se você me der a mão' que fala assim: 'Se você me der a mão pode dar pé, vamos remover montanhas leva fé. A vida não dá colher, mas não precisa talher. Se o bicho pega a gente solta o bicho e rema contra a maré'.

Eu ouvi muito essa música e sei que a gente pode remar contra a maré, eu sei que a gente pode fazer muita coisa. Eu me emociono muito porque é verdade, sei o quanto as pessoas foram tocadas pelo meu trabalho. Isso pra mim é um tesouro.

Por isso digo que a gente tem que arregaçar as mangas. Não podemos ficar no discurso vazio decorado, porque isso não vai valer de nada. Kemla Baptista, em depoimento à reportagem de Ecoa

Raphael de Faria

Kemla Baptista ouve as histórias de Vovó Cissi

Vídeo do canal Contação de Estórias

O negro é muita força, fé e raiz

"Eu só conto história porque ouvi muitas", é assim que Kemla Baptista começa a narrar sua trajetória. A educadora nasceu em Pernambuco, mas foi no Rio de Janeiro que começou o trabalho como contadora de histórias. E a influência veio do berço.

Seu pai era jogador de futebol profissional e gostava de compartilhar com ela "as dificuldades e belezas de sua vida de morador de favela nos anos 50", como lembra Kemla. Nascia aí o gosto da pernambucana pela tradição oral. Já a mãe, professora de escola pública, apresentou à filha o universo do livro.

Antes de começar a contar histórias, contudo, Kemla foi professora, e na escola onde trabalhava pôde perceber algo no ensino da história do povo negro que a incomodava. "Na biblioteca, qualquer livro com temática afro-brasileira era classificado como folclore", lembra. A educadora, que é candomblecista, sentiu o mesmo incômodo na maneira como as religiões de matriz africana eram retratadas.

A religiosidade, o desconforto sobre como a história negra era contada e o gosto pela leitura e pela tradição oral foram as sementes plantadas em Kemla que geraram o Caçando Estórias, projeto que, em quase 13 anos, já impactou 25 mil pessoas.

Raphael de Faria Raphael de Faria

Fronteira não há pra nos impedir

Em 2008 nasceu o Caçando Estórias, escrito com "E" mesmo. O nome do projeto já fala bastante sobre ele e sobre a própria Kemla. A escolha da palavra estória, segundo ela, é política. "História com 'h' é a história oficial", afirma.

Dá para entender um pouco mais sobre a que história oficial ela se refere quando explica o restante do nome. "Eu sou uma pessoa que é filha de Obá, uma orixá caçadora, e olhar para essa imagem de caçador me faz pensar na pessoa preta que caça a sua própria história aqui no Brasil".

E é essa a função do projeto idealizado por Kemla. Durante sete anos, ela percorreu terreiros, favelas e até alguns quilombos do Rio de Janeiro contando para as crianças as histórias de orixás e de pessoas negras que foram importantes para o Brasil. É como diz aquele famoso samba-enredo da Mangueira, Kemla conta "a história que a história não conta".

O apagamento da história dos povos negros no Brasil é literal, não é nenhum "mimimi", como muitos podem pensar. Em 1890, o então ministro Ruy Barbosa ordenou que fossem queimados todos os documentos relacionados à escravidão. A medida tem como resultado, hoje, a falta de conhecimento que muitos negros brasileiros têm sobre seus antepassados.

Além disso, a lei nº 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, muitas vezes não é cumprida. "Quando eu observei ausência de pessoas negras nesse lugar de representação positiva para as crianças eu pensei que poderia fazer a diferença", explica Kemla.

Raphael de Faria Raphael de Faria

Levanta, sacode a poeira

Depois de levar o Caçando Estórias para o Rio de Janeiro e para as redes sociais, incluindo o YouTube, Kemla decidiu voltar para Pernambuco para construir ali a sede do projeto, e a escolha do local não foi ao acaso. "A Casa do Ofá fica no início do Centro Histórico de Olinda onde tem muita pobreza e violência", explica.

A própria Kemla foi vítima da violência que assola a região. Em 20 de janeiro deste ano, a Casa, ainda em reforma para a inauguração, foi saqueada. "Isso causou um estrago muito grande em mim, mas entendo que a criminalidade e as drogas vieram para destruir a possibilidade da juventude negra nas periferias", conta.

A frustração veio também porque Kemla colocou, literalmente, a mão na massa para a reforma da Casa que, como ela conta, "estava toda destruída, mas foi o que consegui alugar pagando sozinha". Uma vaquinha online fez com que Kemla conseguisse arrecadar uma parte do dinheiro para recomeçar. "Teve vizinho aqui, que nem conhece meu trabalho, que me ajudou com saco de cimento", lembra emocionada.

A ideia era que a Casa do Ofá fosse inaugurada em 12 de março, dia do aniversário de Olinda e Recife, com algumas atividades presenciais, como palestras e rodas de conversa, respeitando os protocolos para evitar contaminação pela covid-19.

Contudo, mais uma adversidade passou pelo caminho da Casa e de Kemla. No último dia 26 de janeiro, a chuva que assolou Olinda derrubou todo o telhado da casa e a alagou. "Foi, perda total. Cruel demais", comentou Kemla. Para recomeçar, mais uma vez, a contadora lançou mais uma vaquinha online para conseguir fundos para reformar a Casa. Você pode acessá-la neste link.

O meu papel social como afro-religiosa, como educadora e como mãe é deixar alguma coisa para o futuro

Kemla Baptista, educadora e contadora de histórias

Negro é inspiração

Procurar uma atividade para o Dia das Crianças que não envolva a compra de muitos presentes pode parecer difícil. Mas foi no meio dessa busca que Leila Santos, mãe da Ayla, encontrou, em 2018, o Aguerézinho, festejo idealizado por Kemla. "Era um evento no Museu da Abolição, no Recife, ao ar livre, com uma mulher preta trazendo a cultura africana numa linguagem acessível às crianças", recorda.

A pequena Ayla ainda não lia, tinha apenas três anos, mas Leila lembra que o som da contação de história e toda sua movimentação ficaram gravados na memória da filha. "Eu fiquei apaixonada e Ayla encantada!". Desde então, as duas não deixam de acompanhar o trabalho de Kemla, seja em outros eventos, seja nas redes sociais. "E Ayla, que antes a conhecia como 'a moça do museu' cresceu, aprendeu seu nome e faz suas escolhas das histórias que mais gosta e deseja ouvir do canal", conta Leila.

Com a pandemia do coronavírus, mãe e filha têm acompanhado as lives de contação de histórias de Kemla no Instagram, mas não veem a hora de poder aproveitar as atividades presenciais na Casa do Ofá.

"A Casa do Ofá é um espaço de magia e encantamento das nossas crianças e da nossa criança interior que em outros tempos não encontrava espaços, atividades e representatividade da história, religiosidade e cultura africana", comenta Leila.

Acompanhar as ações do Caçando Estórias é fortalecer a si para fortalecer nossas crianças

Leila Santos:

Raphael de Faria

"O trabalho fundamental"

Quando pensa em alguém que foi importante na sua trajetória, Kemla pensa em Mãe Paula. Foi ela que viu uma das primeiras contações de histórias da pernambucana no Rio de Janeiro. Elas se conheceram há quase 10 anos em um terreiro de candomblé. "Tinha muitas crianças nesse terreiro e a Kemla começou a contar histórias para elas, inclusive meu filho adorava as histórias dela", lembra Mãe Paula.

"Um dia eu vi a Kemla sentada do lado de fora do terreiro com o cavaquinho e um monte de crianças em volta ouvindo ela contar histórias em forma de canção. Eu achei aquela cena deslumbrante", conta. Nos terreiros, o trabalho de Kemla envolvia entender as atividades religiosas para adequar as histórias que contaria a elas. "Eu contava uma história sobre o Xangô porque a casa estava vivendo um momento litúrgico sobre aquele orixá. A criança só aprende aquilo que tem sentido e significado", explica a educadora.

Como Mãe Paula lembra, ela não contava histórias só para as crianças de terreiro, vinham outras crianças do entorno para ouvi-la. Hoje, as duas são parceiras de trabalho. Mãe Paula é idealizadora do Projeto Ose Dudu, que promove palestras itinerantes e cursos sobre os princípios yorubás. Ela, inclusive, realizará algumas atividades do projeto na Casa do Ofá.

"O trabalho da Kemla é fundamental porque quando você se reconhece negro, e tem essa intimidade com a sua própria negritude desde pequeno, é muito mais fácil você se tornar um adulto potente", explica Mãe Paula.

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